Música sertaneja e agricultura em Goiás

Quadro do pintor catalano, Itamar, em 2016 (Foto: Reprodução)

Ao longo do século passado, a agricultura tradicional foi sendo substituída pela agricultura moderna e as relações sociais foram se transformando na mesma velocidade. Na mescla entre o velho e o novo, a música sertaneja se tornou o principal canal de expressão das mudanças. A interação entre campo e cidade esteve magistralmente cantada nas composições do gênero.

O fenômeno ocorreu primeiro em São Paulo, onde a modernização agrícola foi pioneira. Depois, em Goiás, onde o processo foi tardio, mas arrastou o universo sertanejo para Goiânia.

O mundo rural pode ser compreendido através de suas diferentes maneiras de produzir. Nos tempos antigos não havia separação entre pecuária e agricultura. Ambas eram atividades complementares e indispensáveis na vida interiorana. Enquanto as lavouras cresciam, havia sempre bois, porcos e frangos para vender ou abater. A criação de gado era extensiva, largada nos pastos, enquanto o plantio e a colheita, na ausência de maquinário, eram realizados através de mutirões nas fazendas.

Assim, em um ritmo lento, a agropecuária foi responsável pela sobrevivência de milhares de famílias no interior brasileiro. Pequenas cidades, povoados e arraiais cresceram à sombra da produção tradicional de subsistência.

A música caipira externava essa luta cotidiana na terra, onde a vaquinha era sagrada, a honra inviolável, os casos de amor, muitas vezes, desencontrados, assim como também havia majestade nos sabiás e nos canarinhos de peito amarelo que coloriam a vida na roça.

O conteúdo das canções traduzia a labuta no campo, a condução das boiadas e os desafios entre violeiros. A forma original de exibição era a dupla de cantores e a viola o instrumento básico na divulgação das histórias sertanejas. O palco dos artistas era nas festas da roça e nos circos que se apresentavam nas cidades. Era o tempo do chamado sertanejo de raiz.

A partir da metade do século, vieram as primeiras modificações. O processo de industrialização nacional tornou a cidade atrativa para as famílias do campo e a modernização da agricultura, nas terras de São Paulo, ocasionou um êxodo demográfico em direção ao mundo urbano. Houve um forte esvaziamento na área rural e uma transformação na vida de seus habitantes.

Nesse ambiente, a música sertaneja foi obrigada a alterar o seu conteúdo. Não havia mais o cotidiano rural para cantar, apenas lamentar. Afinal, de que adianta viver na cidade se a felicidade não acompanhar.
Logo em seguida, a temática caipira se rendeu totalmente à vida urbana. O telefone mudo, o avião das nove, a boate azul, o pagode em Brasília e a vida de caminhoneiro ganharam as paradas de sucesso, liderando o novo espírito sertanejo nas cidades.

Todavia, se o conteúdo das canções mudou, a forma continuou a mesma. As vozes de artistas em dupla e o doído som das violas ainda comandavam as melodias. O uso do chapéu e das botas encontrou nos rodeios um local adequado para exibições.

Logo vieram as primeiras inovações. O rádio alcançou os confins do mundo rural e se tornou um canal de comunicação com as longínquas fazendas e povoados. Apareceram as primeiras duplas femininas, enquanto a harpa, a sanfona e o contrabaixo abafaram os tinidos da viola nos concertos.

São Paulo se tornou o centro da produção sertaneja do país. As contradições entre o velho, o novo e a explosão demográfica urbana eram bem mais visíveis e palpáveis naquele território.

Já no final do século, Goiás se tornou a bola da vez no cenário sertanejo. Tudo começou com a modernização da agricultura no estado, a partir da década de 1980. Nada foi por acaso. A lavoura se desligou de vez da pecuária, a especialização se tornou obrigatória no campo, a produtividade virou objetivo a ser alcançado, os tratores substituíram as velhas enxadas e as colhedeiras sepultaram os mutirões de outrora. A terra obteve uma valorização repentina em Goiás, inviabilizando a permanência de famílias no campo. O inchaço urbano alcançou a área central do estado e avançou pelo sudoeste goiano.

O ambiente musical sertanejo acompanhava de perto o resultado dessas mudanças estruturais na vida dos goianos. Dessa feita, o lamento veio sob a forma do romantismo. De São Paulo a Goiás, entre tapas e beijos, formou-se uma romaria de duplas sertanejas para o novo cenário que se abria. O gênero musical, apesar de sertanejo, se tornou urbano, nas luzes da cidade acesa, e a temática ficou restrita ao relacionamento amoroso. É o amor, que passou a mexer com a cabeça do jovem, e traduzir essa nova tendência.

A música popular é uma forma de expressão que, para obter sucesso, tem que ser universal. Ou seja, retratar a vida cotidiana e os sentimentos de toda uma população. Se residem na cidade, a essência das canções deve se identificar com o modo de vida dos cidadãos. O boteco, a cerveja, os ciúmes e o lamento passional foram se tornando temáticas preferidas do público e dos compositores.

Da antiga semente rural sobraram apenas botas, cintos, chapéus e o modo de exibição em duplas. Mas, com a formação de grandes bandas de acompanhamento, até mesmo a apresentação em dupla se tornou meramente um detalhe e a carreira solo foi ganhando cada vez mais espaço.

Os investimentos do mercado fonográfico, em Goiânia, fizeram da capital de Goiás o reduto do universo sertanejo. O público jovem, no começo capitaneado por alunos da zootecnia e agronomia, consagrou o gênero musical nos meios universitários.
Enquanto a agricultura moderna continua avançando pelo território goiano, alcançando cada vez maior produtividade, a música sertaneja segue buscando conteúdos diferentes para apresentar. Mesmo que sejam de pura sofrência.

Escrito por: Luís Estevam

Luiz estevam é doutor em Economia pela Unicamp, membro titular do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG) e da Sociedade Goiana de História da Agricultura (SGHA).

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