De boiadeiro a guardião da democracia: Conheça a história de João Netto de Campos; por Luís Estevam

Luís Estevam fala de João Netto de Campos, um herói nacional

João Netto de Campos (Foto: Divulgação)

Essa foi a trajetória do catalano João Netto de Campos. Como boiadeiro era conhecido e respeitado pelos grandes criadores de gado do Triângulo Mineiro. Como político, defendeu a liberdade dos moradores de Catalão que, pela primeira vez, experimentaram o voto sem cabresto.

João Netto nasceu em 1911 e, desde cedo, tinha tudo para ser político. Sua família descendia do primeiro administrador de Catalão, João de Cerqueira Netto, e seu pai, Mário de Cerqueira Netto, também ocupou a intendência municipal. No entanto, quando jovem, tinha outras inclinações. Gostava mesmo era da vida rural.

Estudou nos colégios Sagrada Família em Catalão e no Diocesano de Uberaba. Apesar de ter condições de obter uma formação educacional elitizada, não foi além do quinto ano fundamental. Voltado inteiramente para a lida na roça, casou-se logo, aos 18 anos de idade, com Maria Isabel de Mendonça, tendo quatro filhos: Mário, Yeda, Álvaro e Marly.

Quando jovem, passava os dias ocupado com os afazeres rurais e comprovou ser uma pessoa muito simples. Ligado ao povo mais humilde da cidade, estava sempre prestando favores aos mais necessitados. Tanto que, desde cedo, foi amistosamente chamado de Joãozinho pelos moradores.

No trabalho cotidiano, João Netto tinha duas paixões. De um lado, a preferência pela utilização de técnicas agrícolas bem avançadas na agropecuária. De outro, um incontido entusiasmo pela criação e comércio de gado. Ou seja, era um fazendeiro moderno, que usava maquinário na lavoura, alcançando safras de alta produtividade. Ao mesmo tempo, era um boiadeiro conhecido nas altas rodas da atividade, tendo enviado inúmeras boiadas para os frigoríficos paulistas.

O maior entrevero que enfrentou, no mundo dos negócios, foi quando resolveu conduzir uma boiada para o México. Embarcou 350 reses de zebu no Porto de Santos, quando ainda não haviam exportações de gado brasileiro para a América do Norte. O negócio ocasionou um imbróglio diplomático, em 1946, envolvendo os Estados Unidos, o México do Brasil.

O próprio João Netto relembrou o episódio, em depoimento ao jornal Voz do Sudeste, em 1988. Relatou que: “Embarquei o gado no navio, em Santos, e após trinta dias conseguimos chegar. Só que, com a nossa chegada, criaram uma situação bastante dificultosa, provocada pelos Estados Unidos, sendo impedido o desembarque. Com muita dificuldade, depois de muita luta, conseguimos autorização para que o gado desembarcasse e fosse confinado numa ilha em um sistema de quarentena. Só que a quarentena prolongou-se por cinco meses. Tudo isso por causa da pressão norte-americana que não queria concorrência do gado brasileiro no seu mercado de reprodutores. Lutamos muito, gastamos muito dinheiro, até que o gado foi baixado em terra. Mas, infelizmente nessa época, surgiu a febre aftosa. Aí começou outra luta. A tal febre aftosa estava a 400km de Santa Cruz, local onde estava o gado brasileiro. Foi uma batalha dura de vencer. Vivíamos numa apreensão terrível. Só para ter uma noção, teve dia que tinham 14 veterinários para examinar o gado brasileiro. Mas, graças a Deus, conseguimos provar a eles que, realmente o gado deles é que estava contaminado e não o nosso, como haviam dito”.

Apesar de tudo, João Netto ainda tentou abrir o mercado para o gado brasileiro. Contou que, “em 19 de dezembro de 1946, fui até o palácio para fazer um grande contrato para fornecimento de gado brasileiro ao México. Ao meu lado, me auxiliando bastante, estava o senador Carlos Serrano que conversou com o presidente mexicano, que lhe disse a seguinte frase: ‘está provado que a aftosa que está no México é brasileira’. Saí do palácio e fui imediatamente para o hotel fazer as malas e, junto com minha esposa, fomos para o aeroporto onde pegaríamos o vôo da zero hora rumo a Argentina. Mas, para nossa infelicidade, fomos barrados pela polícia aérea porque não tínhamos visto nos passaportes. Tivemos que ficar lá, enfrentando as perseguições, mesmo porque o mexicano, apesar de seu cavalheirismo e hospitalidade, é muito vingativo. Mas, graças a Deus e a uma boa recompensa à polícia aérea, conseguimos embarcar num vôo para o Panamá. Era a única saída. Ficamos quatro dias no Panamá esperando passagem de volta para o Brasil”.

Hoje sabe-se que, quem atrapalhou tudo foi o embaixador norte-americano no Brasil, Pawley Jr., que se opunha tenazmente à exportação de reprodutores brasileiros para a América do Norte. Porém, com a intervenção direta do presidente Gaspar Dutra, foi vencida essa batalha internacional em favor do gado zebu brasileiro.

A epopéia do boiadeiro catalano no México ganhou, durante oito meses, o noticiário no Brasil. Jornais e emissoras de rádio transformaram João Netto de Campos numa espécie de herói nacional. Quando chegou a Catalão, pousando seu avião biplano numa rua do bairro São João, foi festejado por populares que o acompanharam, a pé, até o centro da cidade.

Logo, porém, Joãozinho retornou aos seus negócios em Uberaba. Deslocava-se com facilidade porque tinha um avião, que ele mesmo pilotava. Aliás, pilotava muito bem porque, certa vez, sofreu um atentado e teve de pousar numa lagoa. Haviam colocado água no tanque do avião e ele somente percebeu o problema, bem depois que saiu de Catalão, quando o motor parou em pleno vôo. Mas, com calma e coragem, conseguiu descer o biplano em uma aguada do rio Paranaíba, sem se ferir gravemente e tampouco estragar o avião. Algum tempo depois, vendeu o avião e doou o dinheiro para ajudar na construção da Santa Casa de Catalão.

Antes, em 1947, vieram as eleições para prefeito. De acordo com a nova Constituição, os administradores municipais não seriam mais nomeados e sim escolhidos livremente pela população. Era uma ocasião especial e a comunidade catalana também queria um candidato especial. Fizeram um abaixo assinado, com três mil assinaturas, e enviaram para o boiadeiro em Uberaba.

João Netto, sensibilizado, retornou a Catalão na condição de candidato a prefeito, filiando-se a um pequeno partido, recém criado em nível nacional. Foi o primeiro prefeito eleito pela nova agremiação. E, assim começou a sua vida pública, aos 36 anos de idade.

Como político, tinha duas características marcantes. Sustentava posições de forma inabalável e a sua franqueza, nas palavras e ações, impressionava. Como estava sempre na oposição, tinha muito o que enfrentar. Foi, por esta razão, apelidado de Velho Guerreiro, tanto pelos adversários, como pelo povo em geral. Nem o fato de haver levado um tiro no rosto, à queima roupa, o desanimou.

A outra característica foi a de estar sempre ao lado dos mais fracos, conseguindo o apoio da população mais humilde do município. Os moradores deliravam com seus discursos, que começavam sempre com o bordão: “Povo meu, gente minha”.

Como não tinha o apoio do governo estadual, na condição de prefeito eleito, aliou -se ao governador de São Paulo, conseguindo trazer uma agência do Banco do Brasil para Catalão.

Como a energia elétrica da cidade era muito fraca e inconstante, enfrentou os donos da empresa local, trazendo uma distribuidora paulista para gerir a oferta de eletricidade em Catalão.

Como não existia hospital de caridade no município, liderou a fundação da Santa Casa de Misericórdia em Catalão.

Como os estudantes mais pobres não conseguiam avançar nos estudos por falta de estabelecimentos na cidade, fundou o colégio estadual que hoje leva o seu nome.

E, assim, inúmeras outras realizações tiveram a iniciativa de João Netto de Campos no município. O Velho Guerreiro exerceu liderança política praticamente enquanto viveu. Participou diretamente da eleição de vários prefeitos: Cyro Netto, Antonio Chaud, Jacy Netto, Osark Leite, Paulo Hummel e Haley Margon.

Teve fortes adversários políticos. Mas, todos o respeitaram pela lisura de suas ações e pela honestidade na condução da administração pública.

Silvio Paschoal, por exemplo, um dos seus mais ferrenhos adversários, de certa feita, o elogiou publicamente. Na ocasião,o deputado Silvio chamou João Netto pelo apelido reverente de Velho Guerreiro e o considerou “um grande homem público, digno de respeito e admiração, um marco na história de Catalão’.

A verdade é que, João Netto de Campos, o grande boiadeiro do passado e líder político por mais de meio século, dedicou sua vida inteira aos destinos de Catalão. Foi prefeito duas vezes,assumiu como deputado eleito três vezes, além de vereador. No entanto, morreu pobre, deixando de herança apenas um fusca 1981, branco.

COLÉGIO ESTADUAL “JOÃO NETTO DE CAMPOS”

Catalão resolveu investir na formação educacional dos jovens menos favorecidos construindo, no início da década de 1960, o Colégio Estadual João Netto de Campos. Até então, somente os estudantes mais abastados podiam arcar com mensalidades em curso secundário. A maioria dos alunos, ao terminar o curso primário, era obrigada a dar por encerrada a sua etapa estudantil.

Na época, Catalão tinha cinco grupos escolares, além dos cursos equivalentes mantidos pelos padres franciscanos e pelas madres agostinianas. Era grande o número de concluintes do primário de ambos os sexos. Porém, centenas deles não ingressavam na etapa secundária por falta de escola gratuita. Ou seja, a cidade carecia de um colégio ginasial misto, público e isento de mensalidades.

Esta foi a conclusão de Antonio Chaud, Maria das Dores Campos, Aguinaldo de Campos Netto e João Martins Teixeira, grupo de professores que resolveu defender essa ideia no finalzinho da década de 1950. Apresentaram tais argumentos ao líder político da época, João Netto de Campos que, sensibilizado, passou a trabalhar em três frentes diferentes, até obter a instalação do ginásio gratuito em Catalão.

Primeiro, João Netto pleiteou junto ao governador do estado, José Feliciano que, respondendo positivamente e de próprio punho, encaminhou o pedido á Secretaria de Educação. Em seguida, influenciou a apresentação de um projeto na Assembleia Legislativa, em novembro de 1960, autorizando a criação da escola em Catalão em regime de urgência. O projeto obteve o apoio maciço dos parlamentares, com 21 assinaturas, inclusive a do representante catalano do PSD, deputado Wison da Paixão.

Por fim, João Netto partiu para o Rio de Janeiro, juntamente com professores de Catalão, adiantando um processo no Ministério da Educação (MEC), organizado com uma série de documentos processuais, visando obter licença federal para o currículo do colégio a ser fundado em Catalão. A burocracia retardou o processo porque o MEC estava de mudança do Rio de Janeiro para Brasília. Mesmo assim, foi aprovado em tempo hábil.

A pressa, para criação do colégio, era justificada, já que centenas de jovens catalanos, sem condições financeiras, abandonavam os estudos depois do curso primário todos os anos.

Assim, em maio de 1961, em cerimônia festiva no Cine Real, foi assinada oficialmente a criação do Ginásio Estadual em Catalão.

De forma espontânea, João Netto de Campos foi eleito como patrono o incansável pioneiro nos esforços pela aprovação do projeto. Era um tempo de transição política. O processo começara com o governador José Feliciano e terminara com Mauro Borges Teixeira. Iniciara com o prefeito Jacy de Campos Netto e terminara na gestão de Osark Vieira Leite. Por isso, o papel do líder João Netto fora fundamental.

A escola tinha sido criada mas não tinha prédio para funcionamento. Ainda assim, foram feitas as matrículas e o ginásio funcionou, público e gratuito, nas dependências do São Bernardino de Siena, em 1961. Logo após, foi transferido para o prédio da Fundação Wagner Estelita Campos ainda em construção. Enfim, em maio de 1964, com 850 alunos matriculados, o Ginásio Estadual ocupou a sua sede definitiva.

Nos anos seguintes a afluência de alunos foi tamanha que ultrapassou duas mil matrículas, exigindo ampliação e criação de anexos ao prédio. Em 1966, no contexto de uniformização do sistema educacional, o ginásio mudou sua denominação para Colégio Estadual João Netto de Campos. Com o tempo, ganhou quadras esportivas, piscinas, laboratório, biblioteca e um grande salão para eventos educacionais e comemorações sociais.

Colégio Estadual “João Netto de Campos” (Foto: Reprodução da Internet)

Escrito por: Luís Estevam

Luiz estevam é doutor em Economia pela Unicamp, membro titular do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG) e da Sociedade Goiana de História da Agricultura (SGHA).

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