212 trabalhadores são resgatados com fome, dívidas e exaustão em Goiás

Nordestinos viviam em condições análogas à escravidão na região de Itumbiara. Eles já chegavam no estado com dívidas e para enviar dinheiro para a família, passavam fome e dormiam no chão

Trabalhadores são resgatados durante operação do MTE (Foto: Divulgação / MTE)

O sonho de proporcionar uma vida melhor para a família e a promessa de boas condições de trabalho levaram um grupo de 212 nordestinos, saídos principalmente do Maranhão, Piauí e Rio Grande do Norte, a desembarcarem no Sul de Goiás. Chegando na região de Itumbiara, confrontam a realidade: jornadas de trabalho exaustivas em plantações de cana-de-açúcar e dívidas adquiridas antes mesmo de eles colocarem os pés em solo goiano.

Nos dias de chuva, quando as atividades relacionadas a colheita e plantio dos canaviais ficavam suspensas, eles recebiam uma diária de R$ 80 para fazer outros trabalhos braçais. Quando podiam manusear a cana, as diárias variavam de acordo com a produção de cada um. O valor costumava ficar entre R$ 100 e R$ 150. Para trabalhar, os homens tinham que arcar com o próprio transporte, alimentação, aluguel e providenciar até os instrumentos de trabalho. Para não quebrar a promessa de enviar dinheiro aos familiares, eles deixavam de comer e dormiam no chão de barracos insalubres.

Foi assim que servidores do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) encontraram os homens após uma operação realizada entre segunda-feira (13) e sexta-feira (17). A Superintendência Regional do Trabalho em Goiás, do MTE, coordenou o resgate dos trabalhadores em situação análoga à escravidão e contou com o apoio do Ministério Público do Trabalho (MPT), do Ministério Público Federal (MPF) e da Polícia Federal (PF) de Jataí.

Os trabalhadores tinham a carteira de trabalho assinada por uma empresa goiana de intermediação de mão de obra. Por meio de agenciadores, conhecidos como “gatos”, os homens foram trazidos do Nordeste em veículos fretados ou por meio de ônibus que fazem o transporte de passageiros de maneira irregular. Cada um deles deve arcar com os custos da própria viagem. Ao chegar em Goiás, eles foram enviados para trabalhar em cinco plantações de proprietários que contrataram os serviços da empresa terceirizada.

O auditor-fiscal do Trabalho e coordenador da operação, Roberto Mendes, conta que o caso começou com duas denúncias, há cerca de 10 dias, de trabalhadores rurais atuando em canaviais na região de Itumbiara sem os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) adequados. “Nos deslocamos até lá e verificamos que os dois casos tinham relação e que a situação era mais crítica do que imaginávamos.”

Diariamente, o serviço começava às 5h30 e só acabava quando a luz do dia ia embora. Para trabalhar em torno de 12 horas por dia sob o sol, eles se alimentavam basicamente de arroz e uma pequena porção de carne, como fígado, frango ou salsicha. As refeições eram preparadas de forma improvisada durante a madrugada. Muitos dos trabalhadores comiam a metade da marmita no café da manhã, já que não tinham outros itens para se alimentar.

As mãos ficavam castigadas pelo trabalho repetitivo e perigoso, feito sem luvas adequadas e com instrumentos comprados pelos próprios trabalhadores. Os homens tinham que conviver com a ausência de banheiros nas frentes de trabalho e a aplicação de agrotóxicos sobre os plantios onde atuavam em Cachoeira Dourada, Edéia, Itumbiara e Araporã, esta última localizada em Minas Gerais.

Quando saiam da zona rural, os homens eram levados para algum dos 30 alojamentos improvisados em barracos que estão localizados na zona urbana de Itumbiara, Porteirão e Araporã. Os locais contavam com paredes mofadas, goteiras nos telhados e alguns quartos sequer possuíam janelas. O aluguel de alguns desses barracos alcançava R$ 1,5 mil por mês.

Apesar de os alojamentos contarem com algumas camas, colchões não eram fornecidos. Sem condições financeiras, a maioria dos trabalhadores dormiam no chão, muitas vezes sobre redes esticadas na tentativa de amenizar o frio. Os locais não contavam com chuveiros e os banhos eram tomados na água fria que vinha diretamente do encanamento do banheiro.

As irregularidades constatadas pelas autoridades levaram a configuração de trabalho análogo à condição de escravo. Os contratantes dos trabalhadores são uma usina de cana-de- açúcar, em Edéia, e outros quatro produtores rurais que vendem o insumo para usinas da região. Mendes aponta que a responsabilidade pelas condições em que os homens estavam é deles. “Elas têm o dever de se ater e fiscalizar as condições das empresas terceirizadas”, esclarece.

Após serem comunicados da situação, os contratantes concordaram em realizar o de R$ 2,5 milhões de verbas rescisórias, mais 50% desse valor de dano moral individual, totalizando R$ 3,8 milhões. Além do dano moral individual, foi proposto o pagamento de dano moral coletivo, no valor de R$ 5 milhões, mas ainda não houve fechamento de acordo com os envolvidos. Além disso, os 212 trabalhadores receberão três parcelas de seguro-desemprego. Os pagamentos foram iniciados ainda nesta semana.

No que se refere à parte criminal, a PF instaurou inquérito policial para apurar a prática do crime de submissão de trabalhadores a condições análogas à de escravo. A pena chega a oito anos de reclusão.

De acordo com dados do MPE, em 2022, foram 271 pessoas atendidas em situação análoga à escravidão pela fiscalização do trabalho em Goiás. O estado ficou atrás apenas de Minas Gerais, com 1.070 registros. Apenas em fevereiro deste ano, diligências realizadas entre os dias 7 e 16 de fevereiro, flagraram 152 trabalhadores em condições irregulares e degradantes, em Acreúna, na região Sul do estado.

Usina diz que seleção de fornecedores segue critérios socioambientais 

O relatório de sustentabilidade da safra de 2020/2021, a BP Bunge Bioenergia, proprietária da usina de cana-de-açúcar que foi uma das cinco contratantes do serviço terceirizado da empresa que empregava os trabalhadores em condições análogas a escravidão, destaca que “o respeito ao meio ambiente e às questões trabalhistas são premissas da nossa seleção de fornecedores.”

“Não contratamos ou trabalhamos com fornecedores que tenham problemas financeiros e de ordem legal, trabalhista ou ambiental. Nossos contratos trazem cláusulas de proteção contra trabalho infantil e trabalho análogo ao escravo (também mencionados em nosso Código de Conduta), bem como de asseguração da empresa contratada no sentido de seguir orientações de respeito ao meio ambiente e à legislação trabalhista. Na safra 2020/2021, 100% dos novos fornecedores foram selecionados com base em critérios socioambientais”, diz trecho do relatório.

“Não contratamos ou trabalhamos com fornecedores que tenham problemas financeiros e de ordem legal, trabalhista ou ambiental. Nossos contratos trazem cláusulas de proteção contra trabalho infantil e trabalho análogo ao escravo (também mencionados em nosso Código de Conduta), bem como de asseguração da empresa contratada no sentido de seguir orientações de respeito ao meio ambiente e à legislação trabalhista. Na safra 2020/2021, 100% dos novos fornecedores foram selecionados com base em critérios socioambientais”, diz trecho do relatório.

Em nota, a BP Bunge Bioenergia informou que tomou conhecimento” de uma situação irregular com trabalhadores contratados recentemente por um prestador de serviço em Edéia” e que a companhia “agiu rapidamente em defesa dos trabalhadores para garantir as prioridades sociais e humanas e arcou prontamente com os pagamentos indenizatórios.”

A companhia comunicou ainda que está “colaborando com as autoridades e apurando rigorosamente os fatos e as devidas responsabilidades para conduzir as medidas necessárias” e que “repudia qualquer prática irregular relacionada à saúde e segurança do trabalhador e não compactua com situações que exponham as pessoas à condição degradante de trabalho, seguindo o cumprimento das leis e normas do País e adotando as melhores práticas e padrões para desenvolver suas atividades em conformidade com os direitos humanos.”

A empresa destacou que “trata com seriedade os direitos trabalhistas e exige o mesmo das empresas que integram a sua cadeia produtiva e, por isso, conta com um processo estruturado de seleção, homologação, auditoria, desenvolvimento e melhoria contínua de seus fornecedores e prestadores de serviço. Lamentamos o ocorrido. Para nós, o respeito às pessoas é um valor inegociável.”

A reportagem tentou contato com a S&S Nascimento Serviços e Transportes LTDA, empresa terceirizada que fornecia a mão de obra para as contratantes, mas não obteve resposta até o fechamento desta edição.

Com informações O Popular. (Adaptada)

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